Conhecendo Carolina Maria de Jesus

by - 00:01:00


No fim dos anos 50, um jornalista encarregado de escrever sobre a expansão de uma favela na beira do rio Tiete no bairro Canindé encontrou por sorte e/ou destino uma mulher chamada Carolina Maria de Jesus, a mesma disse que escrevia um livro, então o jornalista ao ler seus cadernos percebeu que ela tinha muito a dizer, desistindo assim de sua matéria e acabou resolvendo subsidiar o primeiro livro de Carolina, “Quarto de Despejo: O Diário de uma Favelada”. O livro lançado no início dos anos sessenta foi explosivo em suas vendas e chegou a ser traduzido para 16 línguas. A até então desconhecida, causou muita curiosidade, assim, uma mulher, negra, pobre, mãe solteira, favelada e com pouco estudo, deu voz a uma classe que permanece silenciada até os dias de hoje.

O livro é de fato um diário onde ela conta seu dia a dia na favela, conta suas dificuldades, a forma que era tratada pelos outros e tudo que fazia para dar comida aos três filhos que tinha. É um livro muito doloroso de se ler, mas ao mesmo tempo engraçado, ela coloca algumas situações cômicas e a forma que ela escreve é simples e leve. Apesar de ter estudado apenas até o segundo ano, Carolina foi uma mulher muito dedicada e que lia bastante sobre tudo, assim, seus textos são cheios de “palavras bonitas” para descrever coisas simples. Contando sobre seu dia, suas batalhas, onde ela era catadora de lixo e vendia tudo que encontrava para comprar o básico para os filhos, sobre seus vizinhos que estavam sempre discutindo, abusando dela por não ter marido, implicando com seus filhos, sua rotina cansativa como ir buscar água todos os dias pela manhã, ela praticamente faz uma autobiografia, o que é muito curioso, pois esse tipo de narrativa faz parte da classe privilegiada, que tem muitas conquistas e "coisas grandes" a contar, o pobre costuma ser descartado.



Carolina se mostra muito politizada em muitos momentos e bastante feminista, as outras mulheres sempre faziam ela de chacota por não ter um marido, mas ela sempre dizia que não precisava de marido, que ela se bastava com seus livros, ainda mais um marido como os das faveladas que batiam nelas, estavam sempre gritando e se deixasse tinham que ser sustentados. Além disso, ela a maior parte do tempo, se mostra preocupada com a falta de comida, isso dói e incomoda ao leitor, percebendo que coisas tão simples são tão grandes para outras e fazem tanta diferença, tem trechos que ela encontra pessoas no lixão tremendo, tendo crises e ela diz que achava que era efeito do álcool, mas na verdade era fome, que a fome era uma desgraça. Isso é muito triste e pesado e ela conseguiu colocar em palavras e transmitir muito do que ela passou através desse livro tão precioso.



Trechos do livro:
"21 DE MAIO. Passei uma noite horrível. Sonhei que eu residia numa casa residivel, tinha banheiro, cozinha, copa e até quarto de criada. Eu ia festejar o aniversário de minha filha Vera Eunice. Eu ia comprar-lhe umas panelinhas que á muito ela vive pedindo. Porque eu estava em condições de comprar. Sentei na mesa para comer. A toalha era alva ao lirio. Eu comia bife, pão com manteiga, batata frita e salada. Quando fui pegar outro bife despertei. Que realidade amarga!
Eu não residia na cidade. Estava na favela. Na lama, as margens do Tietê. E com 9 cruzeiros apenas.
Nao tenho açucar porque ontem eu saí e os meninos comeram o pouco que eu tinha. Quem deve dirigir é quem tem capacidade. Quem tem dó e amisade ao povo. Quem governa o nosso país é quem tem dinheiro, quem não sabe o que é fome, a dor, a aflição do pobre. Se a maioria revoltar-se, o que pode fazer a minoria? Eu estou ao lado do pobre, que é o braço. Braço desnutrido. Precisamos livrar o paiz dos politicos açambarcadores.Eu ontem comi aquele macarrão do lixo com receio de morrer, porque em 1953 eu vendia ferro lá no Zinho. Havia um pretinho bonitinho. Ele ia vender ferro lá no Zinho. Ele era jovem e dizia que quem devia catar papel são os velhos. Um dia eu ia vender ferro quando parei na Avenida Bom Jardim. No Lixão, como é denominado o local. Os lixeiros haviam jogado carne no lixo. E ele escolhia uns pedaços. Disse-me:-
Leva, Carolina. Dá pra comer.
Deu-me uns pedaços. Para não maguá-lo, aceitei. Procurei convencê-lo a não comer aquela carne. Para comer os pães duros ruidos pelos ratos. Ele disse-me que não. Que há dois dias não comia. Acendeu o fogo e assou a carne. A fome era tanta que ele não poude deixar assar a carne. Esquentou-a e comeu. Para não presenciar aquele quadro, saí pensando: faz de conta que eu não presenciei esta cena. Isto não pode ser real num paiz fertil igual ao meu. Revoltei contra o tal Serviço Social que diz ter sido criado para reajustar os desajustados, mas não toma conhecimento da existencia infausta dos marginais. Vendi os ferros no Zinho e voltei para o quintal de São Paulo, a favela. No outro dia encontraram o pretinho morto. Os dedos do seu pé abriram. O espaço era de vinte centimetros. Ele aumentou-se como se fosse de borracha. Os dedos do pé parecia leque. Não trazia documentos. Foi sepultado como um Zé qualquer. Ninguém procurou saber seu nome. Marginal não tem nome. De quatro em quatro anos muda-se os politicos e não soluciona a fome que tem sua matriz na favela e as sucursaes nos lares dos operarios. Quando eu fui buscar agua vi uma infeliz caida perto da torneira porque ontem dormiu sem jantar. É que ela está desnutrida. Os medicos que nós temos na politica sabem
disto.
Achei um cará no lixo, uma batata doce e uma batata solsa. Cheguei na favela os meus meninos estavam roendo um pedaço de pão duro. Pensei: para comer estes pães era preciso que eles tivessem dentes eletricos. Não tinha gordura. Puis o cará e a batata. E agua. Assim que ferveu eu puis o macarrão que os meninos cataram no lixo. Os favelados estão aos poucos convencendo-se que para viver precisam imitar os corvos. Eu não vejo eficiencia no Serviço Social em relação ao favelado. Amanhã não vou ter pão. Vou cozinhar a batata doce.

17 DE JULHO 1995 (...) Fui na D. Florela pedir um dente de alho. E fui na D.
Analia. E recebi o que esperava:
— Não tenho!
Fui torcer as minhas roupas. A D. Aparecida perguntou-me:
— A senhora está gravida?
— Não senhora — respondi gentilmente.
E lhe chinguei interiormente. Se estou gravida não é de sua conta. Tenho pavor destas mulheres da favela. Tudo quer saber! A lingua delas é como os pés de galinha. Tudo espalha. Está circulando rumor que eu estou gravida! E eu, não sabia! (...) (coloquei só um pedaço).

10 de MAIO. Fui na Delegacia e falei com o Tenente. Que homem amavel! Se eu soubesse que ele era tão amavel, eu teria ido na Delegacia na primeira intimação.
(...) O Tenente interessou-se pela educação dos meus filhos. Disse-me que a favela é um ambiente propenso, que as pessoas tem mais possibilidades de delinquir do que tornar-se util a patria e ao país. Pensei: se ele sabe disso, porque não faz um relatorio e envia para os politicos? O Senhor Janio Quadros, o Kubstchek, e o Dr Adhemar de Barros? Agora falar para mim, que sou uma pobre lixeira. Não posso resolver nem as minhas dificuldades.(...) O Brasil precisa ser dirigido por uma pessoa que já passou fome. A fome tambem é professora. Quem passa fome aprende a pensar no proximo e nas crianças."

Esses trechos me marcaram muito e são exemplos do quão sofrida e ao mesmo tempo engraçada a leitura, além de atemporal, pois retrataram muito bem a realidade da desigualdade social daquele Brasil e ainda o de hoje. Isso causou muito interesse em vários países, além de sua originalidade, Carolina foi reconhecida por sua obra, mas não por muito tempo, todo preconceito em volta de suas características físicas e intelectuais levantaram questionamentos sobre sua veracidade e capacidade e acabou caindo no esquecimento popular e morreu assim, o que é extremamente triste e injusto, pois uma escritora como ela deveria ser lembrada e exaltada para sempre.

Deixo aqui minha contribuição, espero que gostem, se emocionem e aproveitem tanto quanto eu! bjss

You May Also Like

1 COMENTÁRIOS